18/07/2022 | Fonte: Valor Econômico

18/07/2022 | Fonte: Valor Econômico

Lei define que ‘praça’ equivale a município. E daí?

Não podemos falar que a Lei nº 14.395/2022 é interpretativa, já que não pairava dúvida sobre o conceito de praça na jurisprudência

Por Fabrício Sarmanho de Albuquerque

O Congresso aprovou o Projeto de Lei nº 2.110, de 2019 para definir que “praça”, para efeito da norma antielisiva do Valor Tributável Mínimo (VTM), equivale a município. A norma foi vetada em outubro de 2021, mas o veto foi derrubado em julho, o que resultou na edição da Lei nº 14.395/2022.

A regra do VTM, aplicável ao IPI, impedia que empresas interligadas manipulassem o preço de seus produtos para, dessa forma, fugir da tributação. A lógica é simples: se uma indústria vende para sua própria atacadista, ela tem a liberdade de fixar livremente o preço, fugindo das regras normais de um mercado concorrencial.

Não podemos falar que a Lei nº 14.395/2022 é interpretativa, já que não pairava dúvida sobre o conceito de praça na jurisprudência

Há alguns anos o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) pacificou o entendimento de que, nessas situações, a praça é o âmbito de abrangência das vendas do industrial para seu atacadista, sem vinculação com elementos geográficos, necessariamente. Esse entendimento já havia sido pacificado na Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF) no Acórdão nº 9303-008.546, conselheiro Rodrigo da Costa Pôssas, em 14 de maio de 2019.

O posicionamento foi adotado pela CSRF mesmo após a vigência da nova sistemática de desempate no Carf - artigo 19-E da Lei nº 10.522/2002 -, no Acórdão nº 9303-011.686, conselheiro Valcir Gassen, em 16 de agosto de 2021.

Então não podemos falar que a Lei nº 14.395/2022 é interpretativa, já que não pairava dúvida sobre o conceito de praça na jurisprudência. O artigo 2º da norma acrescentou o artigo 15-A à Lei nº 4.502/1964 para dizer que a partir da sua vigência “considera-se praça o município”, modificando o entendimento pacificado da CSRF. A lei, inovadora, alterou o conceito pacificado de praça, de tal forma que não pode retroagir para alcançar lançamentos já realizados, que configuram atos jurídicos perfeitos. Trata-se de situação idêntica à decidida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no RE 566.621/RS, em que tive oportunidade de oferecer sustentação oral, e na qual a Lei Complementar nº 118/2005, a despeito de se autoproclamar interpretativa, foi considerada inovadora por alterar orientação consolidada no STJ.

O que se verificou foi que, não havendo argumentos jurídicos substanciosos a seu favor, as empresas autuadas fizeram o que lhes cabia: forçaram a via legislativa para alterar a jurisprudência, uma prática de “legislative overruling” que é frequente e legítima. Para Peter Hogg e Allison Bushell, estudiosos do caso canadense, estamos diante dos “diálogos constitucionais”. Para Kent Roach seria um caso de “reação legislativa” e para Tushnet uma hipótese de “construção coordenada”. Todos esses estudiosos entendem que as definições jurídicas devem surgir de diálogos entre os poderes, sendo legítima a superação da jurisprudência pela imposição legal superveniente.

No caso da Lei nº 14.395/2022, porém, há que se pensar se andou bem o legislador, já que a sua edição praticamente anulou a regra do VTM. Explico: a partir de agora, apenas uma empresa muito ingênua instalará sua comercial atacadista no mesmo município em que opera sua planta industrial. A grande maioria criará empresa comercial em município diverso, para afetar seus preços.

Então nos perguntamos: agiu bem o legislador ao tornar inoperante a regra do VTM? A resposta é sim!

O VTM é uma regra muito antiga e causava inúmeros problemas. Muito mais interessante é a moderna regra da “equiparação a industrial”, que abarca a maior parte dos segmentos produtivos. Sabendo disso é que o Decreto nº 8.393/2015 incluiu na Tabela TIPI, Anexo III, que define as posições sujeitas à equiparação, inúmeros produtos de higiene, egmento que mais descumpria a regra do VTM.

Sendo assim, diante da inutilidade do VTM gerada pela novel legislação, basta ao Poder Executivo acabar com as raras exceções da “equiparação a industrial”, por meio de decreto, para evitar essa prática de afetação de preço.

Mas o que fazer enquanto isso não acontece e algumas empresas ainda são excluídas da equiparação industrial, como o segmento de armas, de alto-falantes, de ferramentas e de peças automotivas?

As autuações de IPI com base em VTM quase sempre vinham acompanhadas de uma outra autuação concomitante, de PIS/Cofins monofásicos, pois muitos dos segmentos excluídos da equiparação a industrial também eram beneficiados pela monofasia. Nesse caso, a fiscalização tinha um trabalho duplo. No caso do IPI autuava com base no VTM e no PIS/Cofins autuava com base na simulação (artigo 149, VII, do CTN).

A situação atual se mostra muito mais vantajosa para a fiscalização. Diante da deliberada inoperância da regra do VTM, causada pela Lei nº 14.395/2022, poderá a fiscalização fazer uma autuação só, baseada na simulação decorrente da criação artificial de uma etapa de venda intragrupo, feita para a afetação de preços, em planejamento tributário abusivo. E finalmente teremos a justa aplicação da multa qualificada, já que estamos falando em empresas que fraudulentamente subfaturavam seus preços.

E não poderá o contribuinte reivindicar a aplicação da regra do VTM-custo, do artigo 196 do Regulamento do Imposto sobre Produtos Industrializados (RIPI), pois o fenômeno da simulação vicia o próprio ato. Não há lógica em se corrigir o preço utilizado na definição da base de cálculo em uma operação, se essa mesma operação sequer pode ser considerada pelo Fisco, já que simulada.

Em outras palavras, não há que se perquirir o preço “correto” da venda, pelo VTM-Custo, se essa venda sequer existe para o Fisco, pois simulada. Por isso, podemos afirmar com toda a segurança: o Congresso Nacional definiu que “praça”, para efeito de VTM, equivale a município. E daí?


Notícia: https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2022/07/18/lei-define-que-praca-equivale-a-municipio-e-dai.ghtml

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