10/02/2022 | Fonte: Valor Econômico

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Coerção tributária, dados e a ADI 4980

Nos últimos anos, a dinâmica do envio da Representação Fiscal para Fins Penais se tornou praticamente automática

Por Rebeca Drummond de Andrade Müller

A pauta do plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) promete um primeiro semestre agitado. Para esta análise, nos interessa a ADI 4.980, ajuizada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) e de relatoria do ministro Nunes Marques, prevista para o dia 10 de março.

Dois pontos em discussão na ADI têm enorme repercussão para os contribuintes. O primeiro é o uso da persecução penal para impelir o pagamento de tributos. O segundo, a exposição de dados fiscais sigilosos.

No julgamento, será definida a (im)possibilidade do envio da Representação Fiscal para Fins Penais (RFFP) ao Ministério Público sem a necessidade de exaurimento da instância administrativa. Apesar da Súmula Vinculante 24, que impede a tipificação de crime material contra a ordem tributária antes do lançamento definitivo do crédito, a PGR defende a tese de que o enunciado não seria aplicável para os crimes de apropriação indébita previdenciária, dada a sua característica de crime formal.

Nos últimos anos, a dinâmica do envio da Representação Fiscal para Fins Penais se tornou praticamente automática

Assim como a súmula, o artigo 83 da Lei 9.430/96 impede o envio da RFFP sem a constituição definitiva do crédito tributário. A controvérsia, portanto, deriva da inclusão, feita pela Medida Provisória nº 497/2010, convertida na Lei nº 12.350/10, dos crimes previdenciários na dinâmica do esgotamento da esfera administrativa.

Segundo a procuradoria, a inserção legislativa é inconstitucional, pois trata-se de delito que não depende da constituição definitiva para atestar sua consumação. A espera pelo fim do processo administrativo é, há muito, fonte de preocupação do órgão persecutório. E a discussão ressuscita a tentativa de afastar o preceito ao menos para os crimes previdenciários. 

Todavia, onde reside o receio do Parquet, também mora a preocupação dos contribuintes. Eles bem sabem que, nos últimos anos, a dinâmica do envio da RFFP se tornou praticamente automática. Ao mesmo tempo, o caos das normas tributárias e da divergência de entendimentos leva a autuações fiscais posteriormente desconstituídas pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). Nesse cenário, autorizar o encaminhamento de informações ao MP sem a chancela final administrativa seria como presumir que todo contribuinte autuado é um criminoso em potencial.

Para além das discussões sobre a presunção de inocência e ampla defesa, a investigação criminal representa um custo e tem o efeito deletério à imagem do indivíduo e ao desenvolvimento das atividades empresariais. O temor de enfrentá-la força o empresário, muitas vezes, ao pagamento do crédito na forma cobrada pelo Fisco e à consequente confissão, ainda que a autuação se baseie em critérios ilegais ou inconstitucionais, ou simplesmente não tenha havido o dolo. A afirmação de que o “oferecimento da inicial acusatória a partir da notificação do lançamento não agrava a situação do contribuinte” não é verdadeira quando confrontada com a realidade.

Desde 2008, ou seja, antes da edição da Lei 12.350/10, a própria Receita Federal, ao regulamentar a RFFP, esclareceu que, mesmo para as autuações previdenciárias, o Fisco somente poderia enviar o documento ao MP após a sua constituição definitiva (Portaria RFB nº 665).

De qualquer sorte, a redação da Súmula Vinculante 24 necessitaria de aprimoramento para abarcar a espécie previdenciária e evitar que se estimule o pagamento de tributos por meio do receio da persecução penal.

A segunda preocupação em jogo se refere à remessa de informações fiscais protegidas pelo sigilo. Quando o STF afirmou, em 2019, a possibilidade do envio de informações para fins penais no fluxo que parte da Receita diretamente para o MP, a Corte valeu-se de parâmetros aptos a protegerem o sigilo, sendo um deles justamente a constituição definitiva do crédito pela seara administrativa, como forma de resguardar o devido processo legal e a ampla defesa (RE 1.055.941).

Caso se entenda que a apropriação indébita previdenciária não obedeça ao rito do exaurimento, será preciso reavaliar os critérios para proteção dos dados sigilosos contidos na RFFP, já que o envio prescinde de autorização judicial.

Merece atenção, ainda, o fato de que hoje é permitida a requisição de informações feitas pelo MP à Receita Federal - ou seja, o fluxo contrário. Uma ferramenta poderosa, que capacita a reunião de elementos probatórios necessários à investigação do contribuinte sem que ele mesmo tenha controle.

Isso reforça que a espera pela constituição definitiva do crédito tem peso ainda maior sobre o resguardo das garantias constitucionais, como a ampla defesa e o devido processo legal, inerentes ao processo administrativo fiscal.

Diversas ramificações poderão surgir do tema, alcançando as esferas penal e tributária. Somadas a elas estão consequências cruciais para o ambiente da proteção de dados fiscais sigilosos e para princípios como o da separação informacional de poderes.

Na sociedade dataísta, informação é poder. Em tempos de massificação de dados e de flexibilização da privacidade, a ponderação de garantias procedimentais, que também compõem o interesse público, torna-se peça fundamental. Tudo isso estará em jogo no julgamento da ADI 4.980.


Notícia: https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2022/02/10/coercao-tributaria-dados-e-a-adi-4980.ghtml ou as ferramentas oferecidas na página.


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